Hipoclorito de Sódio na Endodontia: desafios globais e impacto clínico
- Endotoday
- 16 de set.
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Introdução

O hipoclorito de sódio (NaOCl) é, há mais de 80 anos, o irrigante mais utilizado em Endodontia. Desde os trabalhos de Louis I. Grossman, que consolidaram o conceito de instrumentação mecânica associada à irrigação química(Grossman, 1943), sua popularidade se deve a três fatores principais:
Poder antimicrobiano único, capaz de eliminar bactérias resistentes presentes nos canais radiculares;
Capacidade de dissolução tecidual, fundamental para remover restos orgânicos inacessíveis às limas;
Baixo custo e ampla disponibilidade no mercado.
Apesar da eficácia indiscutível, o status regulatório do NaOCl varia muito ao redor do mundo. Em alguns países, ele é tratado como produto de baixo risco; em outros, é considerado um dispositivo médico de alto risco, exigindo rigorosos testes clínicos e processos burocráticos para ser comercializadoInt Endodontic J - 2024 - Peter….
Por que a regulamentação é importante do Hipoclorito de sódio?
Produtos utilizados em procedimentos médicos devem equilibrar eficácia clínica com segurança para o paciente. No caso do NaOCl:
Riscos clínicos: acidentes de extrusão podem causar necrose tecidual e reações graves;
Riscos de qualidade: soluções industriais ou domésticas podem conter metais pesados (como ferro), estabilizantes ou impurezas indesejadas;
Riscos regulatórios: ausência de normas claras permite que dentistas utilizem água sanitária doméstica, prática ainda comum em alguns países.
Assim, o debate atual não é sobre se devemos usar o NaOCl — isso é consenso —, mas como regulamentá-lo de forma equilibrada, garantindo segurança sem inviabilizar seu acesso clínico.
Porque o limite é 5,25%.
1. Origem histórica nos EUA
Nos anos 1940, Louis I. Grossman e colaboradores foram pioneiros em estudos com irrigação endodôntica.
Em 1941, Grossman & Meiman publicaram no Journal of the American Dental Association um estudo clássico mostrando que soluções de hipoclorito de sódio a 5%–5,25% eram eficazes para dissolução de tecido pulpar e descontaminação dos canaisInt Endodontic J - 2024 - Peter….
Esse trabalho fundamentou o uso dessa concentração como padrão de referência nos EUA.
2. Água sanitária doméstica (bleach) como referência
Nos EUA, a “household bleach” (água sanitária doméstica), desde o século XX, é fabricada com aproximadamente 5,25% de NaOCl.
Por ser amplamente disponível, barata e estável, tornou-se a fonte original utilizada pelos clínicos americanos como irrigante.
Esse valor passou a ser reproduzido em estudos laboratoriais e clínicos como concentração padrão.
3. Consolidação científica
Diversos trabalhos subsequentes, principalmente a partir das décadas de 1970 e 1980, repetiram a concentração de 5,25% como parâmetro experimental.
Assim, mesmo sem uma norma oficial da FDA, a prática clínica e a literatura científica americana consolidaram essa concentração como referência.
4. Situação regulatória atual
Como vimos no artigo que o senhor enviou, nos EUA o NaOCl para uso odontológico não é classificado pela FDA — ou seja, não há uma obrigatoriedade de 5,25%.
O que existe é um padrão histórico-científico estabelecido a partir do trabalho de Grossman & Meiman (1941) e perpetuado por décadas de uso clínico e publicações.
📌 Referência clássica dos EUA:Grossman, L.I. & Meiman, B.W. (1941). Solution of pulp tissue by chemical agents. Journal of the American Dental Association, 28, 223–225.
Linha do tempo.
1941 – Primeiros estudos: Grossman & Meiman mostram dissolução tecidual com NaOCl 5,25%.
1943 – Consolidação: Grossman propõe irrigação química + instrumentação.
1945 – Popularização: NaOCl 5,25% vira rotina clínica nos EUA.
1970 – Pesquisa global: 5,25% se torna padrão em estudos laboratoriais.
1990 – Difusão mundial: protocolos clínicos adotam 5,25% como referência.
2024 – Atualidade: Peters et al. discutem os desafios regulatórios globais.
Situação regulatória por regiões
União Europeia e países associados
Até recentemente, o NaOCl era classificado como Classe IIa (baixo a médio risco).
Sob a nova Medical Device Regulation (MDR 2017/745), passou para Classe III (alto risco).
Consequências: fabricantes precisam apresentar dados clínicos, monitoramento pós-comercialização e certificação mais cara e demorada.
Problema: risco de escassez de produtos, já que pequenas empresas podem não suportar os custos da nova regulamentaçãoInt Endodontic J - 2024 - Peter….
Reino Unido, Suíça e Turquia
Apesar do Brexit e da não participação da Suíça na União Europeia, ambos os países adotaram a MDR europeiaquase na íntegra.
Na Turquia, os fabricantes que produziam NaOCl como Classe IIa precisarão adaptar-se às regras da Classe III, o que pode limitar a oferta.
Estados Unidos
O uso de NaOCl não é classificado pela FDA como dispositivo médico específico.
Muitas vezes, dentistas utilizam água sanitária doméstica, prática tolerada na ausência de regulamentação clara.
Algumas soluções comerciais (ex.: ChlorCid, ChlorXtra) aparecem em registros 510(k), mas não possuem categoria de risco definida.
Canadá
Situação semelhante aos EUA: o NaOCl é regulado como biocida/pesticida, e não como irrigante odontológico.
Produtos disponíveis apresentam concentrações acima de 5,25%, destinadas à desinfecção de superfícies, e não ao uso intra-humano.
Austrália
O NaOCl é classificado como Classe IIa (risco moderado) pela TGA.
Produtos precisam ser aprovados oficialmente, sendo permitido até 4,2% de NaOCl (equivalente a 4% de cloro ativo).
Curiosidade histórica: até a década de 1990, era comum o uso de soluções como Milton’s, corrosivas para instrumentos endodônticos.
Índia
Regulamentado como baixo a moderado risco, permitindo acesso em farmácias e distribuidores odontológicos.
A fabricação e importação exigem licenças específicas (MD-5 e MD-15) e auditorias de qualidade.
Vantagem: ampla disponibilidade e baixo custo, favorecendo o acesso clínico.
China
Antes de 2000, endodontistas utilizavam água sanitária doméstica diluída.
Desde 2017, o NaOCl foi reclassificado de Classe III (alto risco) para Classe II (risco moderado).
Hoje, soluções de 1%, 3% e 5% são facilmente acessíveis em clínicas e hospitais.
Japão
O país adota uma das regulamentações mais rígidas do mundo.
O NaOCl pode ser:
Fármaco prescrito, em concentrações de 3 a 10%;
Dispositivo médico Classe III, quando combinado a outros agentes (ex.: EDTA).
Problema: existem apenas cinco formulações aprovadas, obrigando o clínico a diluir soluções concentradas e a lidar com alto custo e poucas opções comerciais.
Brasil
Regulado pela ANVISA como Classe II (risco moderado).
Pode ser adquirido tanto de fornecedores odontológicos quanto em farmácias que manipulam soluções farmacêuticas puras.
Desafio: ainda há dentistas que utilizam água sanitária doméstica, sem controle de concentração ou pureza, o que representa risco ético e clínicoInt Endodontic J - 2024 - Peter….

Pontos críticos discutidos pelos autores
Sub-regulação (EUA e Canadá): favorece o uso de água sanitária, com riscos de toxicidade e impurezas.
Hiper-regulação (Japão e União Europeia): pode limitar a disponibilidade de soluções comerciais e aumentar o custo.
Equilíbrio necessário: a solução ideal seria uma regulamentação clara, mas não excessiva, que garanta soluções puras e acessíveis.
Impacto clínico: independentemente da legislação, a literatura mostra que a concentração de NaOCl é o fator determinante para sua eficácia, e não aditivos proprietários que muitas empresas alegam como diferencial.
Implicações para a prática odontológica
Dentistas devem evitar o uso de água sanitária doméstica, ainda que tentadora pelo preço e disponibilidade.
Soluções farmacêuticas puras ou registradas em órgãos regulatórios devem ser a única escolha ética e segura.
A comunidade endodôntica precisa atuar junto às autoridades para manter o acesso a irrigantes de qualidade, evitando tanto a escassez quanto o uso inadequado.
Conclusão
O NaOCl permanece o padrão-ouro da irrigação endodôntica, mas seu futuro depende da capacidade de equilibrar segurança do paciente, qualidade industrial e acessibilidade clínica.
Países que sub-regulam expõem pacientes a riscos desnecessários.
Países que hiper-regulam correm o risco de criar barreiras de acesso.
O caminho ideal está em uma regulação sensata e proporcional, apoiada por evidências científicas e pela colaboração entre sociedades odontológicas e órgãos de saúde.
📖 Referência principalPeters, O.A., Ballal, N.V., Abe, S., De-Deus, G., Gündogar, M., Camilleri, J., Chen, Z., & Zehnder, M. (2024). Regulatory issues related to the use of sodium hypochlorite solutions in endodontics. International Endodontic Journal, 00, 1–11. https://doi.org/10.1111/iej.14174
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