🦷 Diagnóstico Endodôntico Contemporâneo: Algoritmos Práticos e Armadilhas (CBCT × Radiografia Periapical)
- Endotoday

- 11 de nov.
- 7 min de leitura
Entenda quando a radiografia periapical é suficiente e quando a CBCT muda completamente o diagnóstico e o plano de tratamento endodôntico.

Introdução
O diagnóstico endodôntico contemporâneo é uma arte de equilíbrio entre precisão tecnológica e interpretação clínica. Com a evolução da tomografia computadorizada de feixe cônico (CBCT), surge uma dúvida recorrente entre clínicos e especialistas: qual método de imagem oferece o melhor resultado diagnóstico — a tradicional radiografia periapical (PA) ou a CBCT?
Ambas têm vantagens e limitações, mas a decisão deve se basear em evidências científicas e no raciocínio clínico. Este artigo analisa criticamente os principais estudos recentes sobre o tema — Yapp et al. (2021, DOI: 10.1117/1.JMI.8.4.041205), Antony et al. (2020, DOI: 10.7759/cureus.7736), Yapp et al. (2023, DOI: 10.1016/j.joen.2023.02.001) e Ee et al. (2014, DOI: 10.1016/j.joen.2014.03.002) — e apresenta um algoritmo práticopara o diagnóstico endodôntico seguro e eficiente.
Revisão da Literatura
“A radiografia periapical continua sendo o padrão inicial para diagnóstico endodôntico, mas a CBCT redefine o planejamento em casos complexos.”(Ee et al., Journal of Endodontics, 2014)
Para embasar nossa reflexão, vejamos o que cada artigo contribui:
Endodontic disease detection: digital periapical radiography versus cone‑beam computed tomography—a systematic review (Yapp et al., 2021, DOI 10.1117/1.JMI.8.4.041205)Estudo de revisão sistemática que compara a performance diagnóstica entre radiografia digital periapical (PA) e CBCT em detecção de doença endodôntica. Encontrou que os dados são ainda escassos e heterogêneos, com sensibilidade da PA variando entre 27 %–60 % e da CBCT entre 60 %–100 % em estudos “ex vivo”. Especificidade da PA alta (~99 %), da CBCT entre ~79 %–100 %. Conclui-se que “há falta de evidência de qualidade para comparar de forma definitiva essas modalidades”. PubMed+2Academia+2
Two‑dimensional Periapical, Panoramic Radiography Versus Three‑dimensional Cone‑beam Computed Tomography in the Detection of Periapical Lesion After Endodontic Treatment: A Systematic Review (Antony et al., 2020, DOI 10.7759/cureus.7736)Revisão sistemática examinando a detecção de lesão periapical após tratamento endodôntico, comparando radiografia 2D (periapical e panorâmica) com CBCT 3D. Concluiu que todos os estudos incluídos reportaram maior acurácia da CBCT na detecção de lesões periapicais quando comparadas às radiografias convencionais. PubMed+1
Periapical Radiography versus Cone Beam Computed Tomography in Endodontic Disease Detection: A Free‑Response, Factorial Study (Yapp et al., 2023, DOI 10.1016/j.joen.2023.02.001)Estudo clínico de desempenho de leitores (60 radiografias PA vs. 60 CBCT) em diferentes categorias de casos (subtle, moderate, obvious; diseased vs nondiseased). O achado surpreendente: a radiografia PA apresentou valores mais elevados de desempenho em certas categorias de “doença moderada/subtil” do que a CBCT — por exemplo, melhores valores de localização de lesão e menor taxa de falsos positivos. A CBCT apresentou maior especificidade nos casos óbvios sem doença. Conclui: “o desempenho do leitor na detecção de doença endodôntica foi melhor com radiografia PA do que CBCT.” PubMed+2Europe PMC+2
Comparison of Endodontic Diagnosis and Treatment Planning Decisions Using Cone‑Beam Volumetric Tomography Versus Periapical Radiography (Ee et al., 2014, DOI 10.1016/j.joen.2014.03.002)Estudo pré-operatório em 30 casos concluídos de endodontia; três endodontistas avaliaram primeiro radiografia PA, depois CBCT, e registraram se houve mudança de plano de tratamento. Resultado: mudança do plano em aproximadamente 62 % dos casos após uso da CBCT. Conclui-se que a CBCT fornece informação adicional significativa que pode alterar a abordagem terapêutica.
Síntese Crítica e Principais Mensagens
A partir desses estudos, podemos extrair as seguintes reflexões, com ênfase crítica:
A CBCT oferece, em teoria, maior sensibilidade para detecção de lesões periapicais, canais acessórias, fraturas radiculares ou anatomia complexa — como apontado por Antony et al. (2020) e pela revisão de Yapp et al. (2021).
Contudo, a evidência mais recente (Yapp et al. 2023) sugere que, em certas categorias de casos, a radiografia periapical pode superar a CBCT em termos de desempenho prático de leitura (menos falsos positivos, melhor localização de lesão moderada/subtil).
A CBCT impacta o planejamento terapêutico, como demonstrado por Ee et al. (2014): em mais de 60 % dos casos, a introdução da CBCT levou a mudança na conduta.
Importa ainda considerar o perfil do leitor, o ambiente clínico, questões éticas e de dose de radiação, custo, acesso e justificativa diagnóstica — nem todo caso demanda CBCT e a decisão deve ficar vinculada ao “quando” e “porquê”.
A revisão de Yapp et al. (2021) chama atenção para a escassez de estudos de alta qualidade com padrão-ouro histológico ou clínico, tornando qualquer conclusão relativamente provisória.
Algoritmo Prático para o Diagnóstico Endodôntico
A seguir, proponho um fluxo de decisão (algoritmo) que o profissional de endodontia pode adotar, com base nos dados científicos e considerando fatores clínicos:
Etapa inicial – Radiografia periapical (PA) digital de boa qualidade
Realize radiografias periapicais planos ortoradial e, se necessário, angulação de bisel ou parallax para identificar lesões periapicais, avaliar preparo, obturação e presença de instrumentação irregular.
Avalie se há sinais claros de: lesão periapical, reabsorção externa/interna, fratura, anatomia complicada (ex.: canal curvo grave, furca, MB2 acessório), ou sintomas clínicos não resolvidos.
Se a interpretação da radiografia for clara e suficiente para diagnóstico/tratamento
Exemplo: necrose pulpar com ampla radiolucência clássica, tratamento indicado; acompanhamento habitual.
Neste cenário, PA normalmente será suficiente e o custo/benefício de CBCT pode não estar justificado.
Se houver dúvida diagnóstica, anatomia complexa ou planejamento cirúrgico/endodôntico avançado
Dificuldade para localizar lesão (especialmente em osso esponjoso), suspeita de fratura radicular, canais acessórios, pós-tratamento com falha aparentemente inexplicada ou recidiva.
Aqui, a CBCT se justifica — pois aumenta a chance de visualizar estruturas ocultas, definir extensão real da lesão, ou modificar plano de tratamento. Baseado no achado de Ee et al. (2014) (mudança de plano em ~60 % dos casos).
Avaliação crítica antes de pedir CBCT
Verifique se a dose e o campo de visão escolhidos respeitam o princípio ALARA (o menor campo possível, campo limitado ao dente em questão).
Justifique o exame: "a CBCT será utilizada para..." (ex.: determinar extensão da lesão, localizar canal acessório, avaliar fratura).
Considere que, conforme Yapp et al. 2023, embora a CBCT tenha maior especificidade em casos evidentes de não doença, em casos moderados/subtis a leitura da PA pode ter desempenho superior — ou seja, o profissional deve ter experiência na leitura da CBCT para evitar armadilhas (falsos-positivos, “over-diagnosis”).
Integração e decisão final
Após obtenção da CBCT (se indicada): revise com atenção, correlacione com achados clínicos, sinais/sintomas, exame periapical.
Reavalie o plano: talvez novo acesso, uso de microscópio operatório, extensão de preparo, planejamento cirúrgico.
Não esqueça: imagem é auxiliar — história clínica, exame clínico, testes de vitalidade/pulpais, periodontais e o julgamento profissional continuam sendo essenciais.
Armadilhas e Cuidados Específicos
Como professor de pós-graduação em endodontia, destaco algumas armadilhas que frequentemente ocorrem no uso de imagem diagnóstica:
Falsos negativos em PA: Lesões iniciais localizadas no osso esponjoso (sem ruptura cortical) podem não aparecer em PA, levando a sub‐diagnóstico. Evidenciado nas revisões que mostram sensibilidade da PA relativamente baixa (27%–60%). Academia+1
Falsos positivos em CBCT: Artefatos, volume de voxels grande demais, super‐interpretação de irregularidades anatômicas e pequenos canais poros (“over‐interpretation”) podem levar a planos terapêuticos mais invasivos desnecessariamente. O estudo de Yapp et al. 2023 aponta maior taxa de falsos positivos com CBCT em casos sutis. PubMed
Excesso de exposição à radiação: CBCT, mesmo com FOV reduzido, acarreta maior dose que PA. A escolha deve estar justificada e proporcional ao benefício diagnóstico.
Custo e acesso: Nem sempre disponível no consultório, ou pode gerar custos adicionais ao paciente.
Sobreconfiança na CBCT: O fato de ter a CBCT não substitui o exame clínico, nem garante decisão terapêutica correta se o profissional não tiver familiaridade com a leitura tridimensional ou se basear apenas na imagem sem correlacionar com sintomas.
Planejamento sem correlação clínica: Pedir CBCT “porque é moderno” ou “porque todos pedem” é um erro. A indicação deve ser objetiva.

Aplicação Clínica
📋 Algoritmo Prático para Escolha do Exame
Início: Radiografia periapical digital
Realize radiografia ortorradial e angulada.
Avalie sinais de lesão periapical, reabsorções ou falhas de tratamento.
Se o diagnóstico estiver claro →
Siga o protocolo convencional.
A PA é suficiente e mantém menor dose de radiação.
Se houver dúvida, anatomia complexa ou suspeita de fratura →
Indique CBCT de campo reduzido.
Avalie extensão da lesão, canais acessórios ou fraturas radiculares.
Antes de solicitar CBCT:
Justifique clinicamente a necessidade.
Escolha o menor campo de visão (FOV) possível — princípio ALARA.
Interprete criticamente:
A CBCT revela detalhes invisíveis na PA, mas pode gerar falsos positivos.
Sempre correlacione os achados tridimensionais com sinais e sintomas clínicos.
Qual é melhor — PA ou CBCT? Qual o veredito?
Em resposta clara à pergunta inicial:
Não há resposta única que funcione para todos os casos. A “melhor” modalidade depende do quadro clínico, das dúvidas diagnósticas, da anatomia envolvida, da urgência terapêutica e das implicações de tratamento.
Se o caso for rotina, sem complicações aparentes e a radiografia PA for de boa qualidade, então a PA costuma ser adequada, com boa especificidade e menor custo/risco.
Se houver complexidade, dúvida diagnóstica, anatomia “escondida” ou planejamento cirúrgico/retreatimento com risco maior, então a CBCT torna-se a ferramenta de escolha — pois oferece informação tridimensional que pode alterar o plano terapêutico (como demonstrado por Ee et al. 2014).
Contudo, é importante estar consciente de que a CBCT não é milagrosa — leitura inadequada, artefatos, interpretação equivocada poderão levar a erros; e o estudo de Yapp et al. 2023 alerta que em situações moderadas/subtis de doença, a PA ainda pode superar a CBCT em desempenho de leitor.
Portanto: o algoritmo ideal é “comece pela PA; avance para a CBCT se e somente se for clinicamente justificável, e interprete com crítica”.
✅ Checklist: Quando e Como Usar a Radiografia Periapical e a CBCT na Endodontia
🔹 Etapa 1 – Avaliação Inicial
Realizei anamnese completa e identifiquei sinais clínicos compatíveis com patologia endodôntica.
A radiografia periapical digital foi obtida com técnica e angulação adequadas.
As margens do dente e do osso estão nítidas e sem distorções na imagem.
🔹 Etapa 2 – Interpretação Radiográfica
Verifiquei integridade da lâmina dura e presença de rarefação periapical.
Comparei imagens em diferentes angulações (ortorradial e bisel).
Analisei possíveis reabsorções, fraturas ou canais acessórios.
Correlacionei achados radiográficos com testes de vitalidade pulpar e sintomas clínicos.
🔹 Etapa 3 – Indicação de CBCT
Há dúvida diagnóstica mesmo após análise da radiografia periapical.
O caso envolve anatomia complexa (MB2, curvaturas acentuadas ou múltiplos canais).
Suspeito de fratura radicular ou lesão não visível em 2D.
Necessito de planejamento cirúrgico, retratamento ou avaliação pós-operatória detalhada.
Justifiquei clinicamente a solicitação da CBCT (princípio ALARA).
🔹 Etapa 4 – Interpretação Tomográfica
Utilizei campo de visão reduzido (FOV pequeno) para minimizar a dose de radiação.
Avaliei as imagens em três planos ortogonais (axial, coronal e sagital).
Identifiquei lesões em osso esponjoso e relacionei com a clínica.
Evitei superinterpretação de artefatos e pequenas irregularidades anatômicas.
🔹 Etapa 5 – Tomada de Decisão
Corrigi o diagnóstico ou confirmei a hipótese inicial com base nas imagens.
Registrei como a CBCT influenciou o plano de tratamento.
Incluí imagens de comparação (PA × CBCT) no prontuário ou relatório clínico.
Orientei o paciente sobre achados e condutas de forma clara e documentada.
📘 Dica Final
“Domine primeiro a radiografia periapical; use a CBCT como aliada estratégica, não como substituta da análise clínica.”
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Prof. Dr. Marco Aurélio Gagliardi Borges
Endodontista, professor e coordenador da EndoToday Academy.
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