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🦷 Diagnóstico Endodôntico Contemporâneo: Algoritmos Práticos e Armadilhas (CBCT × Radiografia Periapical)

Entenda quando a radiografia periapical é suficiente e quando a CBCT muda completamente o diagnóstico e o plano de tratamento endodôntico.


imagem da tomografia versus radiografia


Introdução


O diagnóstico endodôntico contemporâneo é uma arte de equilíbrio entre precisão tecnológica e interpretação clínica. Com a evolução da tomografia computadorizada de feixe cônico (CBCT), surge uma dúvida recorrente entre clínicos e especialistas: qual método de imagem oferece o melhor resultado diagnóstico — a tradicional radiografia periapical (PA) ou a CBCT?

Ambas têm vantagens e limitações, mas a decisão deve se basear em evidências científicas e no raciocínio clínico. Este artigo analisa criticamente os principais estudos recentes sobre o tema — Yapp et al. (2021, DOI: 10.1117/1.JMI.8.4.041205), Antony et al. (2020, DOI: 10.7759/cureus.7736), Yapp et al. (2023, DOI: 10.1016/j.joen.2023.02.001) e Ee et al. (2014, DOI: 10.1016/j.joen.2014.03.002) — e apresenta um algoritmo práticopara o diagnóstico endodôntico seguro e eficiente.


Revisão da Literatura

“A radiografia periapical continua sendo o padrão inicial para diagnóstico endodôntico, mas a CBCT redefine o planejamento em casos complexos.”(Ee et al., Journal of Endodontics, 2014)

Para embasar nossa reflexão, vejamos o que cada artigo contribui:

  1. Endodontic disease detection: digital periapical radiography versus cone‑beam computed tomography—a systematic review (Yapp et al., 2021, DOI 10.1117/1.JMI.8.4.041205)Estudo de revisão sistemática que compara a performance diagnóstica entre radiografia digital periapical (PA) e CBCT em detecção de doença endodôntica. Encontrou que os dados são ainda escassos e heterogêneos, com sensibilidade da PA variando entre 27 %–60 % e da CBCT entre 60 %–100 % em estudos “ex vivo”. Especificidade da PA alta (~99 %), da CBCT entre ~79 %–100 %. Conclui-se que “há falta de evidência de qualidade para comparar de forma definitiva essas modalidades”. PubMed+2Academia+2

  2. Two‑dimensional Periapical, Panoramic Radiography Versus Three‑dimensional Cone‑beam Computed Tomography in the Detection of Periapical Lesion After Endodontic Treatment: A Systematic Review (Antony et al., 2020, DOI 10.7759/cureus.7736)Revisão sistemática examinando a detecção de lesão periapical após tratamento endodôntico, comparando radiografia 2D (periapical e panorâmica) com CBCT 3D. Concluiu que todos os estudos incluídos reportaram maior acurácia da CBCT na detecção de lesões periapicais quando comparadas às radiografias convencionais. PubMed+1

  3. Periapical Radiography versus Cone Beam Computed Tomography in Endodontic Disease Detection: A Free‑Response, Factorial Study (Yapp et al., 2023, DOI 10.1016/j.joen.2023.02.001)Estudo clínico de desempenho de leitores (60 radiografias PA vs. 60 CBCT) em diferentes categorias de casos (subtle, moderate, obvious; diseased vs nondiseased). O achado surpreendente: a radiografia PA apresentou valores mais elevados de desempenho em certas categorias de “doença moderada/subtil” do que a CBCT — por exemplo, melhores valores de localização de lesão e menor taxa de falsos positivos. A CBCT apresentou maior especificidade nos casos óbvios sem doença. Conclui: “o desempenho do leitor na detecção de doença endodôntica foi melhor com radiografia PA do que CBCT.” PubMed+2Europe PMC+2

  4. Comparison of Endodontic Diagnosis and Treatment Planning Decisions Using Cone‑Beam Volumetric Tomography Versus Periapical Radiography (Ee et al., 2014, DOI 10.1016/j.joen.2014.03.002)Estudo pré-operatório em 30 casos concluídos de endodontia; três endodontistas avaliaram primeiro radiografia PA, depois CBCT, e registraram se houve mudança de plano de tratamento. Resultado: mudança do plano em aproximadamente 62 % dos casos após uso da CBCT. Conclui-se que a CBCT fornece informação adicional significativa que pode alterar a abordagem terapêutica.

Síntese Crítica e Principais Mensagens

A partir desses estudos, podemos extrair as seguintes reflexões, com ênfase crítica:

  • A CBCT oferece, em teoria, maior sensibilidade para detecção de lesões periapicais, canais acessórias, fraturas radiculares ou anatomia complexa — como apontado por Antony et al. (2020) e pela revisão de Yapp et al. (2021).

  • Contudo, a evidência mais recente (Yapp et al. 2023) sugere que, em certas categorias de casos, a radiografia periapical pode superar a CBCT em termos de desempenho prático de leitura (menos falsos positivos, melhor localização de lesão moderada/subtil).

  • A CBCT impacta o planejamento terapêutico, como demonstrado por Ee et al. (2014): em mais de 60 % dos casos, a introdução da CBCT levou a mudança na conduta.

  • Importa ainda considerar o perfil do leitor, o ambiente clínico, questões éticas e de dose de radiação, custo, acesso e justificativa diagnóstica — nem todo caso demanda CBCT e a decisão deve ficar vinculada ao “quando” e “porquê”.

  • A revisão de Yapp et al. (2021) chama atenção para a escassez de estudos de alta qualidade com padrão-ouro histológico ou clínico, tornando qualquer conclusão relativamente provisória.

Algoritmo Prático para o Diagnóstico Endodôntico

A seguir, proponho um fluxo de decisão (algoritmo) que o profissional de endodontia pode adotar, com base nos dados científicos e considerando fatores clínicos:

  1. Etapa inicial – Radiografia periapical (PA) digital de boa qualidade

    • Realize radiografias periapicais planos ortoradial e, se necessário, angulação de bisel ou parallax para identificar lesões periapicais, avaliar preparo, obturação e presença de instrumentação irregular.

    • Avalie se há sinais claros de: lesão periapical, reabsorção externa/interna, fratura, anatomia complicada (ex.: canal curvo grave, furca, MB2 acessório), ou sintomas clínicos não resolvidos.

  2. Se a interpretação da radiografia for clara e suficiente para diagnóstico/tratamento

    • Exemplo: necrose pulpar com ampla radiolucência clássica, tratamento indicado; acompanhamento habitual.

    • Neste cenário, PA normalmente será suficiente e o custo/benefício de CBCT pode não estar justificado.

  3. Se houver dúvida diagnóstica, anatomia complexa ou planejamento cirúrgico/endodôntico avançado

    • Dificuldade para localizar lesão (especialmente em osso esponjoso), suspeita de fratura radicular, canais acessórios, pós-tratamento com falha aparentemente inexplicada ou recidiva.

    • Aqui, a CBCT se justifica — pois aumenta a chance de visualizar estruturas ocultas, definir extensão real da lesão, ou modificar plano de tratamento. Baseado no achado de Ee et al. (2014) (mudança de plano em ~60 % dos casos).

  4. Avaliação crítica antes de pedir CBCT

    • Verifique se a dose e o campo de visão escolhidos respeitam o princípio ALARA (o menor campo possível, campo limitado ao dente em questão).

    • Justifique o exame: "a CBCT será utilizada para..." (ex.: determinar extensão da lesão, localizar canal acessório, avaliar fratura).

    • Considere que, conforme Yapp et al. 2023, embora a CBCT tenha maior especificidade em casos evidentes de não doença, em casos moderados/subtis a leitura da PA pode ter desempenho superior — ou seja, o profissional deve ter experiência na leitura da CBCT para evitar armadilhas (falsos-positivos, “over-diagnosis”).

  5. Integração e decisão final

    • Após obtenção da CBCT (se indicada): revise com atenção, correlacione com achados clínicos, sinais/sintomas, exame periapical.

    • Reavalie o plano: talvez novo acesso, uso de microscópio operatório, extensão de preparo, planejamento cirúrgico.

    • Não esqueça: imagem é auxiliar — história clínica, exame clínico, testes de vitalidade/pulpais, periodontais e o julgamento profissional continuam sendo essenciais.


Armadilhas e Cuidados Específicos

Como professor de pós-graduação em endodontia, destaco algumas armadilhas que frequentemente ocorrem no uso de imagem diagnóstica:

  • Falsos negativos em PA: Lesões iniciais localizadas no osso esponjoso (sem ruptura cortical) podem não aparecer em PA, levando a sub‐diagnóstico. Evidenciado nas revisões que mostram sensibilidade da PA relativamente baixa (27%–60%). Academia+1

  • Falsos positivos em CBCT: Artefatos, volume de voxels grande demais, super‐interpretação de irregularidades anatômicas e pequenos canais poros (“over‐interpretation”) podem levar a planos terapêuticos mais invasivos desnecessariamente. O estudo de Yapp et al. 2023 aponta maior taxa de falsos positivos com CBCT em casos sutis. PubMed

  • Excesso de exposição à radiação: CBCT, mesmo com FOV reduzido, acarreta maior dose que PA. A escolha deve estar justificada e proporcional ao benefício diagnóstico.

  • Custo e acesso: Nem sempre disponível no consultório, ou pode gerar custos adicionais ao paciente.

  • Sobreconfiança na CBCT: O fato de ter a CBCT não substitui o exame clínico, nem garante decisão terapêutica correta se o profissional não tiver familiaridade com a leitura tridimensional ou se basear apenas na imagem sem correlacionar com sintomas.

  • Planejamento sem correlação clínica: Pedir CBCT “porque é moderno” ou “porque todos pedem” é um erro. A indicação deve ser objetiva.


imagem de tomografia


Aplicação Clínica



📋 Algoritmo Prático para Escolha do Exame

  1. Início: Radiografia periapical digital

    • Realize radiografia ortorradial e angulada.

    • Avalie sinais de lesão periapical, reabsorções ou falhas de tratamento.

  2. Se o diagnóstico estiver claro →

    • Siga o protocolo convencional.

    • A PA é suficiente e mantém menor dose de radiação.

  3. Se houver dúvida, anatomia complexa ou suspeita de fratura →

    • Indique CBCT de campo reduzido.

    • Avalie extensão da lesão, canais acessórios ou fraturas radiculares.

  4. Antes de solicitar CBCT:

    • Justifique clinicamente a necessidade.

    • Escolha o menor campo de visão (FOV) possível — princípio ALARA.

  5. Interprete criticamente:

    • A CBCT revela detalhes invisíveis na PA, mas pode gerar falsos positivos.

    • Sempre correlacione os achados tridimensionais com sinais e sintomas clínicos.

Qual é melhor — PA ou CBCT? Qual o veredito?

Em resposta clara à pergunta inicial:

  • Não há resposta única que funcione para todos os casos. A “melhor” modalidade depende do quadro clínico, das dúvidas diagnósticas, da anatomia envolvida, da urgência terapêutica e das implicações de tratamento.

  • Se o caso for rotina, sem complicações aparentes e a radiografia PA for de boa qualidade, então a PA costuma ser adequada, com boa especificidade e menor custo/risco.

  • Se houver complexidade, dúvida diagnóstica, anatomia “escondida” ou planejamento cirúrgico/retreatimento com risco maior, então a CBCT torna-se a ferramenta de escolha — pois oferece informação tridimensional que pode alterar o plano terapêutico (como demonstrado por Ee et al. 2014).

  • Contudo, é importante estar consciente de que a CBCT não é milagrosa — leitura inadequada, artefatos, interpretação equivocada poderão levar a erros; e o estudo de Yapp et al. 2023 alerta que em situações moderadas/subtis de doença, a PA ainda pode superar a CBCT em desempenho de leitor.

Portanto: o algoritmo ideal é “comece pela PA; avance para a CBCT se e somente se for clinicamente justificável, e interprete com crítica”.



Checklist: Quando e Como Usar a Radiografia Periapical e a CBCT na Endodontia


🔹 Etapa 1 – Avaliação Inicial


  • Realizei anamnese completa e identifiquei sinais clínicos compatíveis com patologia endodôntica.

  • A radiografia periapical digital foi obtida com técnica e angulação adequadas.

  • As margens do dente e do osso estão nítidas e sem distorções na imagem.


🔹 Etapa 2 – Interpretação Radiográfica


  • Verifiquei integridade da lâmina dura e presença de rarefação periapical.

  • Comparei imagens em diferentes angulações (ortorradial e bisel).

  • Analisei possíveis reabsorções, fraturas ou canais acessórios.

  • Correlacionei achados radiográficos com testes de vitalidade pulpar e sintomas clínicos.


🔹 Etapa 3 – Indicação de CBCT


  • dúvida diagnóstica mesmo após análise da radiografia periapical.

  • O caso envolve anatomia complexa (MB2, curvaturas acentuadas ou múltiplos canais).

  • Suspeito de fratura radicular ou lesão não visível em 2D.

  • Necessito de planejamento cirúrgico, retratamento ou avaliação pós-operatória detalhada.

  • Justifiquei clinicamente a solicitação da CBCT (princípio ALARA).


🔹 Etapa 4 – Interpretação Tomográfica


  • Utilizei campo de visão reduzido (FOV pequeno) para minimizar a dose de radiação.

  • Avaliei as imagens em três planos ortogonais (axial, coronal e sagital).

  • Identifiquei lesões em osso esponjoso e relacionei com a clínica.

  • Evitei superinterpretação de artefatos e pequenas irregularidades anatômicas.


🔹 Etapa 5 – Tomada de Decisão


  • Corrigi o diagnóstico ou confirmei a hipótese inicial com base nas imagens.

  • Registrei como a CBCT influenciou o plano de tratamento.

  • Incluí imagens de comparação (PA × CBCT) no prontuário ou relatório clínico.

  • Orientei o paciente sobre achados e condutas de forma clara e documentada.


📘 Dica Final

“Domine primeiro a radiografia periapical; use a CBCT como aliada estratégica, não como substituta da análise clínica.”

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Prof. Dr. Marco Aurélio Gagliardi Borges


Endodontista, professor e coordenador da EndoToday Academy.


Siga no Instagram: @endotoday



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